Resistência Arco-Íris | Dandarah-RISE

Resistência Arco-Íris | Dandarah-RISE

No catálogo da Netflix, a série britânica Sex Education, que chegou a sua terceira temporada, faz sucesso trazendo pautas ligadas à sexualidade e ao sexo de forma leve e descontraída

Foto: Reprodução/Netflix

Por que falar de sexo e sexualidade desperta, ao mesmo tempo, interesse e ira?

Estudioso aponta que, embora esteja no dia a dia das pessoas, ainda há o desejo de silenciamento das pautas sobre temáticas sexuais

Por ALEX BESSAS01/10/21 - 03h00

“Que decadência”. “O autor disso vai pro inferno”. “Que matéria ridícula”. “Tá faltando conteúdo?”. “Desnecessária essa reportagem”. “Mídia suja!”. “Vocês querem converter adeptos”. “O responsável tinha que ser demitido”. Estes são alguns dos comentários colhidos em páginas de O TEMPO nas redes sociais em que, via de regra, seguidores reagem a publicações que abordam as temáticas da sexualidade e do sexo. Mais especificamente, tanto furor é desperto diante de assuntos tabus – como as possibilidades de novos arranjos afetivos, as diferentes formas de orientação sexual e o sexo anal e oral.

Curiosamente, a indignação pública, que parece revelar um desejo de silenciamento, foi seguida, em todos os casos analisados, por altos índices de leitura, um indicativo do anseio para que se fale mais desses assuntos.

Este foi o cenário que se desenhou após análise de dados estatísticos de de matérias que atraíram um enxame de comentários críticos – muitos dos quais ultrapassando o limite da opinião para se converter em ofensa gratuita. Em um paradoxo autoevidente, essas mesmas publicações, ficaram entre as mais lidas durante o dia da sua publicação. Um feito e tanto dado que essas reportagens disputavam audiência com outros diversos conteúdos. 

Esse padrão ambivalente – que, em alguns casos, podemos resumir como “xinga, mas lê” – vem sendo observado continuamente ao longo de aproximadamente um anos e três meses. Isso porque, desde a estreia do programa Interess@, da rádio Super 91.7 FM, foi tomada a decisão editorial de pôr em debate, sempre às sextas-feiras, pautas de sexo e sexualidade. Como há uma convergência entre os temas tratados pelo vespertino e por este caderno de O TEMPO, a publicação de tais conteúdos passou a ocorrer semanalmente.

Preconceito

Doutor em ciências da comunicação pela Universidade de São Paulo (USP), Renato Gonçalves também está habituado a lidar com as contradições entre as barulhentas demonstrações de ojeriza e o expressivo interesse por conteúdos sexuais. 

“Eu faço pesquisas em torno do tema da pornografia. Então, por estar inserido em debates sobre esse universo, já percebi que a simples divulgação de estudos sobre conteúdo adulto é, geralmente, recebida com mal-estar – inclusive no meio acadêmico”, garante, ponderando que esse desconforto aparentemente desaparece na hora de consumir material pornográfico.

“No Brasil, em 2019, o XVideos foi o quinto site com maior número de acessos, atrás apenas de páginas como o Google, o Facebook e o YouTube”, aponta. “Com essa robustez e presença, não dá para negligenciar e fingir que esse é um assunto menor, como querem fazer crer o críticos a pesquisas e reportagens sobre esse universo”, critica.

Na avaliação de Gonçalves, as manifestações hostis, que parecem desejar calar esses debates, podem, em alguns casos, revelar uma tentativa de autorrepressão.

“As pautas sobre a questão LGBT são um bom exemplo. É muito comum ver pessoas irritadas com o surgimento de mais letrinhas no movimento. Alguns chegam a dizer que algumas dessas orientações sexuais e identidades de gênero não existem. Para essas pessoas, esse horizonte aberto, esse olhar para uma sexualidade entendida como múltipla e fluida, ameaça certezas. Então, se antes tudo parecia muito simples, agora parece complicado. E esse enigma, à medida que é posto abertamente, vai gerar angústia nesses sujeitos – principalmente para aqueles que preferiam não ter que pensar sobre isso por medo de verem ali representações do que enxergam como seus próprios demônios”, analisa.

“Não pode retirar dessa equação a dificuldade que todos nós temos de lidar com o diferente. Nesse sentido, falar em sexualidade causa revolta justamente por estarmos falando em singularidade. Uma singularidade que se opõe à tentativa de enquadrar os sujeitos em uma norma – no caso, a hetero e cisnormatividade”, acrescenta o psicanalista João Víctor de Pádua Azevedo.

À flor da pele

Para ilustrar o intrigante fenômeno que revela um descompasso entre a frequência de comentários hostis e o fluxo de leitura, analisamos as reações a duas matérias – uma amostragem pequena, mas que resume bem o padrão de comportamento observado ao longo desses um ano e três meses. 

Uma dessas reportagens discutia a prática do pegging, em que, em relações heterossexuais, o homem é penetrado pela parceira. A outra falava sobre a demissexualidade, que é, a grosso modo, uma manifestação do desejo em que, necessariamente, laços afetivos, emocionais e/ou intelectuais precisam ser estabelecidos para que, só depois, ocorra o despertar do interesse sexual – que pode simplesmente não acontecer.

Ambas matérias ficaram entre as mais lidas no dia de sua publicação, mesmo disputando espaços com outras notícias que geraram grande mobilização. Para se ter ideia, a primeira foi veiculada quando as atenções estavam voltadas para o depoimento dos irmãos Miranda na CPI da Pandemia, no Senado Federal, e para a caçada de Lázaro Barbosa, suspeito de ter matado quatro pessoas da mesma família em Ceilândia, no Distrito Federal. Já a segunda, coincidiu com as repercussões das prisões de Roberto Jefferson, presidente do PTB, e da ex-deputada Flordelis.

Somadas, as duas publicações analisadas geraram cerca de 700 comentários no Facebook. A esmagadora maioria das interações, pouco mais de 90% do total, demonstrava algum nível de irritação dos leitores, que, na maior parte das vezes, indicava posicionamento conservador. Contudo, também foi possível perceber inconformidade entre pessoas que se apresentam como progressistas. Os dois grupos adotavam maneiras distintas para externar sua oposição à veiculação das reportagens.

De um lado, os mais conservadores geralmente demonstravam receio de que o simples fato de falar desses assuntos fosse suficiente para ameaçar a ordem social, desestruturar famílias e dissolver valores – alguns chegando a flertar com teorias conspiratórias. De outro, os críticos progressistas frequentemente diziam que aqueles eram temas menores, e que, portanto, não mereciam tanta atenção.

Enxame

Citando um conceito elaborado pelo filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, o pesquisador Renato Gonçalves acredita que alguns temas em especial despertam, nas redes sociais, um comportamento de “enxame de opinião”.

“Nas mídias digitais incorporaram a lógica do imediatismo e da necessidade de respostas rápidas. Se algo me estimulou, preciso responder àquilo de pronto. É um cenário que encoraja muitas pessoas a se posicionarem de maneira irrefletida. Nesse movimento de manada, o sujeito deixa de elaborar uma opinião sobre aquele assunto e simplesmente opta por seguir a maioria”, comenta.

Engajamento

Mas, embora o volume de críticas pareça grande e a forma exaltada como muitas delas são manifestadas possa assustar, estamos falando de algo ínfimo se comparado ao alcance dessas reportagens. Apesar dos quase 700 comentários hostis, esses conteúdos somam, até o momento, mais de 50 mil visualizações.

“Esse fenômeno mostra duas forças agindo simultaneamente, como em um cabo de guerra”, observa o psicólogo e psicanalista João Víctor de Pádua Azevedo. “Temos a natural curiosidade por esse tema, que é tabu há milênios e, por ser cercado de mistério, gera certa ansiedade por respostas. E temos também uma força contrária, que demonstra que, apesar dos avanços recentes de pautas progressistas, há um esforço de se manter o tabu sobre o sexo e a sexualidade, como se falar sobre isso fosse levar a desintegração da ordem social”, avalia.

Xinga, mas lê

Ironicamente, não deixa de chamar a atenção que parte desses fiéis leitores são justamente as mesmas pessoas que, publicamente, demonstram indignação com veiculação desses conteúdos. É como se essas pessoas estivessem dos dois lados desse “cabo de guerra”. Caso de Vinícius, de 32 anos, que será apresentado aqui apenas pelo prenome.

Questionado sobre a razão de ter feito um comentário hostil em uma publicação, na qual atacava este repórter, o estudante de engenharia se explicou: “Eu considero que essas coisas que são abordadas – questão da pessoa ser gay, trans, LGBT, ou essa aí, demissexual, que eu nunca tinha nem ouvido falar – não acrescenta em nada, sabe? As pessoas podem dizer que é porque eu não sou gay, não sou trans e não vivo isso... Mas acho que é uma ‘forçação de barra’”, disse. 

Na sequência, Vinicius demonstrou intimidade com a leitura desses conteúdos que ele próprio julga desnecessários. “Eu citei o nome do Alex Bessa (sic) – sei lá se é esse o nome dele, não o conheço, não o acompanho e não tenho nada contra ele – por seguir o jornal O TEMPO no Facebook. Como as matérias aparecem no meu feed de notícias, eu sempre vejo que ele escreve matérias relacionadas a essa área (da sexualidade). E acho que tem tanta coisa mais importante para se falar…”, completou, informando que é evangélico e que, politicamente, se vê mais à direita.

Vale lembrar: este repórter escreve sobre os mais diversos temas ao longo da semana, tratando de pautas de comportamento, ciência, saúde e cultura, reservando-se a discutir a temática do sexo e da sexualidade apenas nas sextas-feiras.

Conflito interno

“A respeito dessas pessoas que procuram esses conteúdos para ler e também para criticar, enxergo pistas de um embate que acontece, principalmente após o século XX, entre a concepção de sexualidade para a religião e a concepção de sexualidade para a psicologia e, principalmente, para a psicanálise”, reflete João Víctor de Pádua Azevedo.

Ele situa que, para a religião, o sexo costuma ser apresentado como algo que deve ter por fim a reprodução. “Tudo o que foge disso será considerado um desvio, uma anormalidade e um pecado – e esse entendimento ainda está muito arraigado em nossa cultura”, diz. 

Ao mesmo tempo, ainda que busquem conservar esse entendimento, é natural que essas pessoas sintam curiosidade diante de um debate cada vez mais aberto sobre essa temática. “Após as publicações de Sigmund Freud, no final do século XIX e início do século XX, passamos a conviver com a emergência de um discurso que estabelece que a sexualidade é plural e que a diversidade não constitui uma anormalidade”, contextualiza, sinalizando que muitos se percebem nessa encruzilhada de visões, sem saber que postura adotar.

Mini-entrevista

Regina Navarro Lins, Psicanalista e escritora, é autora do livro “Novas Formas de Amar”, em que questiona preconceitos e discute as possibilidades do amor no contemporâneo.

1. Geralmente, as reportagens com a temática da sexualidade ou do sexo reverberam em reações antagônicas: ao mesmo tempo que atraem comentários de pessoas que se sentiram, de alguma maneira, ofendidas, também ficam entre as mais lidas. O que pode estar por trás de tanto furor causado ao se falar sobre o corpo e sobre o encontro dos corpos?

Há 2 mil anos, desde que o cristianismo se instalou no Ocidente, o sexo passou a ser visto como algo sujo, feio, perigoso, algo abominável. Tanto é que foi criada uma ideia de danação eterna. Qualquer pensamento sexual, qualquer desejo, a pessoa estaria condenada à danação eterna. Entre o século III e o século V, surgiu um fenômeno chamado "fuga para o deserto" onde milhares de homens e mulheres foram para o deserto do Egito massacrar o corpo para se libertar do risco da danação eterna por terem pensamentos sexuais. 

Bom, essa repressão foi muito forte e começou a mudar só a partir da criação da pílula anticoncepcional nos anos 60. Mas a mudança de mentalidade é lenta e gradual. Hoje, estamos no meio de um processo de profunda mudança de mentalidade, ou seja, uma profunda mudança na forma de perceber o amor e o sexo. Algo que começou nos anos 60, a partir da pílula, que possibilitou os movimentos de contracultura, o movimento hippie, o movimento feminista, o movimento gay e toda a revolução sexual. 

Por isso, atualmente, muita gente não acredita mais que o sexo seja uma coisa abominável, mas, no inconsciente, os antigos temores, os antigos preconceitos continuam presentes, de forma que muitos sofrem com suas fantasias, seus desejos, preconceitos, medos, culpas e frustrações.

Só para dar um exemplo, mesmo hoje, as crianças, desde muito cedo, aprendem a considerar o sexo feio, sujo e perigoso. Afinal, todo xingamento está ligado ao sexo. Diante desse cenário, fica difícil que as pessoas cresçam desenvolvendo a percepção do sexo como algo que é algo bom e desejável – ainda que, evidente, todos tenham que tomar cuidado com a gravidez não planejada e com as infecções sexualmente transmissíveis (ISTs).

Além disso, como estamos em meio a uma transição entre os antigos valores e os novos valores, vamos encontrar pessoas que já se libertaram desses padrões e pessoas ainda presas a comportamentos conservadores. Para esses últimos, o novo assusta e o desconhecido gera insegurança. Nesse contexto, ao mesmo tempo em que o medo e a culpa são muito presentes, a temática de sexo atrai, pois os desejos sexuais são universais.

2. Qual a importância de, apesar do furor, se falar, se escrever e se ler conteúdos sobre sexo e sexualidade?

Sexo é uma grande fonte de prazer. E, se é algo que pode dar tanto prazer, porque tanta gente fica tentando reprimir os desejos dos outros e de si mesmos? De maneira geral, podemos dizer que, na nossa cultura judaico-cristã, o prazer não é visto com bons olhos. A virtude está no sofrimento. 

Mas, por outro lado, existem vários estudos em países ocidentais que demonstram que o sexo frequente pode, inclusive, evitar uma série de problemas de saúde, como a pressão alta, complicações cardiovasculares e até cânceres. Por essa lógica, ao privar as pessoas do sexo (e de conhecimentos sobre o sexo), estamos privando elas mais do que de prazer: a atividade sexual faz tão bem à saúde que estamos diante de um caso de saúde pública.

or isso é fundamental continuar falando desses temas. Sem dúvida, essa mudança de mentalidade em curso vai evitar, no futuro, muito sofrimento e muitas disfunções sexuais ocasionadas pela repressão da sexualidade.

Fonte: O TEMPO

link: encurtador.com.br/iknKW

Apoio