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Um estudo para vacina contra o HIV é o mais promissor em 40 anos e pode mudar o futuro
E principalmente o futuro de populações mais vulneráveis ao vírus, como as LGBTQIAP+. Aqui, a jornalista Gui Takahashi, candidata aos ensaios clínicos – que acontecem em São Paulo e em outras cidades do mundo – narra sua experiência com o teste, fala de suas expectativas e de ter crescido e se entendido mulher em um Brasil muito recente, no qual a aids foi apelidada de “peste gay” e fez das pessoas trans e travestis alvos de discriminação e violência
GUI TAKAHASHIEM COLABORAÇÃO PARA MARIE CLAIRE 29 SET 2021 - 06H01 ATUALIZADO EM 29 SET 2021 - 06H01
Permaneci imóvel na sala de casa. Sentada no sofá e com os pés fincados no tapete, mas querendo fugir correndo. Minha mãe ainda chorava enquanto eu tentava recuperar a respiração. Eu podia sentir meus batimentos, a boca seca, o fôlego curto e um embrulho no estômago. Ela tinha encontrado meu diário e, assim, descoberto que eu era LGBTQIAP+. Meu maior segredo havia sido revelado e eu não me sentia aliviada. Longe disso. A sensação era de culpa por ter aberto a caixa de Pandora que continha meus piores demônios. Me senti vulnerável de um jeito inédito. Também me senti pouco acolhida, julgada e ali, no olhar dos meus pais, meu pesadelo ficou real. Pude ver, como um traço na areia, a limitação do amor deles e, assim, quase tocar a rejeição. Eu tinha 19 anos e acabado de entrar na faculdade. O mundo era diferente e as discussões de gênero não eram tão abertas e efervescentes como agora.
Naquele “quase ontem”, que também chamo aqui de 2006, a aids era uma ameaça e um estigma para a comunidade queer. Uma vacina que combatesse o vírus não passava de um sonho distante. Quinze anos depois, trago promissoras notícias: está em curso um novo estudo de imunizantes contra o HIV, aliás, a maior aposta da ciência em 40 anos. A travesti que vos escreve está entre os voluntáries dos testes clínicos. Mas, antes que eu relate minha experiência com o Mosaico – esse é o nome do estudo que promete mudar o futuro da aids –, permita que eu conte minha história e do mundo em que cresci. Tudo isso importa tanto quanto a vacina, confie.
Millennial, sou do final dos anos 1980, de um Brasil pós-ditadura que celebrava uma nova Constituição Federal. Tinha um clima de liberalismo no ar que se misturava às aberturas de mulheres seminuas no Fantástico, à asa-delta cavada da Xuxa, às capas da Manchete que poderiam ser pôster de oficina mecânica. Parecia que, depois de tanta repressão, estávamos prontas pra viver nossos corpos e nossa sexualidade. Só parecia. O conservadorismo ainda era grande e pessoas LGBTQIAP+ viviam numa margem mais abissal que a atual. Não à toa, fui uma criança viada enrustida. As sexualidades divergentes da heterossexualidade compulsória sofriam com a pecha da aids. Naquela primeira conversa fora do armário com meus pais, uma das reações deles foi expressar o medo de que eu me tornasse vítima de crimes homofóbicos ou fosse infectada pelo HIV.
Apelidada de “peste gay”, a aids era noticiada como sentença de morte nos anos após o seu descobrimento. O primeiro indício da doença surgiu nos Estados Unidos, num artigo de 5 de junho de 1981 do Centro de Controle e Prevenção de Doenças de lá. Rapidamente, relatos ao redor do mundo apontavam a existência de um novo vírus que faria mais de 36 milhões de vítimas e infectaria mais de 79 milhões até o final de 2020.
O termo aids (síndrome da imunodeficiência adquirida) surgiu em 1982 e acabou sendo associado à população LGBTQIAP+ pelo crescimento rápido de infecções entre gays estadunidenses. A Unaids, organização ligada à Organização das Nações Unidas (ONU) que combate o HIV e a aids no mundo, ainda aponta que a população de maior risco é a de pessoas trans, homens gays ou bi, profissionais do sexo, encarcerados e usuários de drogas injetáveis.
“Questões sociais, como a homofobia, barreiras de acesso à saúde, questões programáticas sobre o que gestores de saúde fizeram para conter os casos nesse grupo, que é marginalizado e sem representação no poder público, contribuíram para isso”, diz Rico Vasconcellos, infectologista e pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Para Bruna Benevides, secretária de articulação política da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), é importante que a consideração da população trans vá além das pesquisas científicas e, sim, que sejam pensadas políticas públicas que possibilitem o enfrentamento das vulnerabilidades que nos colocam em maior risco. “Talvez sejamos o grupo que mais sofre por todo o abandono de nossas demandas. Sobretudo quando observamos que mulheres trans e travestis são ainda mais vulneráveis, e não apenas ao HIV. Somos a parcela da sociedade que tem menor escolaridade e acesso à saúde, menores taxas de emprego e menos acesso à PrEP [Profilaxia Pré-Exposição, uma combinação de dois medicamentos em um único comprimido, que impede que o HIV se estabeleça e se espalhe pelo corpo]. Também somos maioria no trabalho sexual e/ou vivendo na precarização, e que sofre com os maiores índices de violência.”
Bruna continua: “Cabe resgatar que, de acordo com a pesquisa Divas [Diversidade e Valorização da Saúde ou, em seu nome oficial, Estudo de Abrangência Nacional de Comportamentos, Atitudes, Práticas e Prevalência de HIV, Sífilis e Hepatites B e C entre Travestis e Mulheres Trans, realizado pela Fiocruz com o Ministério da Saúde] de 2018, a prevalência média do HIV em mulheres trans/travestis foi de cerca de 40%. Exatamente por termos sido deixadas de lado na perspectiva de cuidados e demandas sociais”.
A definição de risco
Foi já em 1982 que se teve o primeiro registro de HIV no Brasil. A aids marcou profundamente gerações de pessoas LGBTQIAP+, não só pelas vítimas diretas, mas também porque perpetuou infâmias, espalhou o medo, reforçou discursos de ódio. Uma dessas heranças era a proibição expressa, desde 2012, pela Anvisa e pelo Ministério da Saúde de que homossexuais, travestis e pessoas trans doassem sangue se tivessem transado com homens nos últimos 12 meses – impedimento que foi derrubado só no ano passado por uma decisão do Supremo Tribunal Federal.
“Hoje, a definição de risco está muito mais ligada ao comportamento de cada pessoa do que propriamente relacionada às populações-chave. Então, desvincular a proibição desses grupos específicos é importante para minimizar o preconceito. As pessoas têm riscos e vulnerabilidades individuais”, analisa Álvaro Costa, infectologista do Centro de Referência e da Unidade de Pesquisa Santa Cruz, em São Paulo.
Também houve avanços por meio da luta de movimentos sociais no Brasil, a distribuição gratuita de medicamentos para pessoas com HIV ou aids passou a existir em 1996, com a lei federal 9.313. “Somos um país que atuou no sentido de oferecer o tratamento antirretroviral para pessoas com HIV com a ajuda da sociedade civil, bastante articulada desde o começo. O Sistema Único de Saúde é uma conquista. Com todos os avanços globais nas terapias antirretrovirais, o Brasil incorporou esses manuais técnicos. Ou seja, as pessoas com HIV aqui tomam medicações modernas. Isso é importante para dar qualidade de vida com tratamento eficaz, com a redução de efeitos adversos. Mas os desafios ainda são enormes. Temos uma média de 40 mil novas pessoas infectadas por ano. Ainda se peca nas estratégias de prevenção e expansão das novas ferramentas de prevenção, especialmente a PrEP”, continua Álvaro.Esses progressos dos antirretrovirais, além do surgimento da PrEP e da PEP (Profilaxia PósExposição) já refletem melhoras em dados mundiais. Estatísticas da Unaids apontam que, no final de 2020, a mortalidade por doenças relacionadas à aids caiu 47% quando comparada com os números de 2010 (de 1,3 milhão para 680 mil). E, desde então, as novas infecções diminuíram cerca de 30%, indo de 2,1 milhões para 1,5 milhão até o ano passado.
Tenho na memória lembranças turvas do que a comunidade LGBTQIAP+ passou nas décadas de 1980 e 1990. Por isso, vejo na série Pose (Netflix), uma das minhas favoritas, um valor muito grande. Não só por trazer à tona mulheres trans na temática, na produção e no elenco, ou por suas indicações ao Emmy e ao Globo de Ouro. Pose, ao contar a história dos ballrooms nova-iorquinos daquele tempo, retratando a vida de cinco travestis, é um registro na cultura pop do nosso lastro, das gerações que vieram antes de mim e lutaram para que hoje fosse menos dolorido que ontem. A série também consegue manter a memória de tudo que o HIV já nos ceifou.
Uma autoestima travesti não é dada. O mundo em volta deixa claro, desde cedo, que a sua existência não é bem-vinda. A rejeição é uma dor crônica e que passa por capítulos de expulsão de banheiros públicos, cerceamento familiar e social, exclusão no mercado de trabalho e até abusos em relacionamentos. Tentei driblar a rejeição de formas bem precárias e pouco articuladas. Já me fiz caber em relações tóxicas, que frequentemente só envolviam sexo e doses de desprezo por parte dos meus parceiros. Caras enrustidos, casados, que mentiam seus nomes, caras que me abandonaram no meio do encontro, que me deixaram esperando por horas e nunca apareceram. Conheci todos esses. E a minha frágil autoestima repetia que era isso mesmo que eu merecia. Sempre em busca de validação, desesperada por um olhar interessado que pudesse me ler.
Nessas desventuras, peguei HPV, tive que passar por um procedimento hospitalar e, por pouco, escapei de duas sífilis. Esses episódios me fizeram perceber de um jeito quase catártico minha vulnerabilidade e a importância de me cuidar. Então, foi só com a ajuda da terapia, de amigas, com um resgate da relação familiar, muito custo e dor é que forjei a minha autoestima como é hoje.
Mosaico destrinchado
Quarenta anos se passaram desde o início da epidemia de HIV e ainda não encontramos a imunização definitiva. Por quê? Segundo Rico, inúmeras foram as tentativas de criar uma vacina. O desafio está na taxa de mutação do HIV, que é bastante alta, além de ser um vírus que atinge o sistema imunológico. “No caso do coronavírus, demorou um ano pra começarem a aparecer as variantes de preocupação, alfa, delta, beta, gama. Pro HIV, você tem muitas variantes produzida em cada pessoa por dia. Então, quando o corpo começa a organizar uma resposta imune eficaz, ele já mudou e a imunidade não funciona mais para aquela variação”, explica.
"Talvez sejamos o grupo que mais sofre por todo o abandono de nossas demandas. Sobretudo quando observamos que mulheres trans e travestis são ainda mais vulneráveis, e não apenas ao HIV" Bruna Benevides
Bem por isso o Mosaico é tão promissor. Em um momento em que a comunidade científica ficou mais interessada pelo desenvolvimento dessa forma de imunização por causa da covid-19, a Janssen Vaccines and Prevention B.V. com a HIV Vaccine Trials Network (HVTN) e o Centro de Referência e Treinamento DST/Aids estão fazendo essa pesquisa para avaliar a eficácia de uma combinação de vacinas. Cerca de 3.800 homens cis e pessoas trans que têm relação sexual com homens cisgênero e/ou pessoas transgênero participarão em cidades de Brasil, Argentina, Itália, México, Peru, Polônia, Espanha e Estados Unidos. Por aqui, a expectativa é de que sejam mais de 850 voluntários nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Paraná.
O Mosaico tem se demonstrado uma grande aposta, de acordo com Rico Vasconcellos, porque usa uma tecnologia de adenovírus como vetor. A taxa de imunização em macacos chegou a 67%, uma das maiores já registradas. “Isso é inédito, mas a gente precisa lembrar que isso é em macacos. Em seres humanos, precisamos testar a vacina.” Até então, a pesquisa de maior eficácia foi uma realizada na Tailândia chamada de RV144 e que teve redução de incidência do HIV de aproximadamente 30% em humanos. Por ter sido considerada uma taxa baixa, não foi pra frente.
A duração dos testes vai ser de aproximadamente 30 meses e busca responder algumas perguntas. Entre elas, se as vacinas são seguras, se as pessoas podem recebê-las sem ficar desconfortáveis, como o sistema de defesa vai responder, se elas evitam que voluntárias sejam infectadas pelo HIV, sua taxa de eficácia. Vale lembrar que, mesmo que a gente possa ter uma vacina para nos proteger do HIV, ela não será a resposta definitiva. “Caso se obtenha sucesso em seus resultados, a vacina será uma estratégia de prevenção adicional”, diz Rico. Em outras palavras, ela não vai dispensar o uso de camisinha ou até mesmo da PrEP.
Assim que fiquei sabendo do estudo Mosaico pelo perfil de Instagram da Casa da Pesquisa (@pesquisacrt), me interessei porque, como não aderi à PrEP, que é um medicamento de uso contínuo e diário, a perspectiva de uma vacina poderia me ajudar a me proteger. E, por mais que na grande maioria das minhas transas eu use preservativo, já passei por momentos de empolgação em que a camisinha ficou de lado. Depois, sobraram só a noia e o arrependimento.
Como travesti, ter parceiros fixos e confiáveis é um baita desafio. Normalmente, sou fetiche para caras que não lidam bem com sua própria sexualidade, que não querem abdicar dos privilégios que o machismo garante à masculinidade e, assim, ficam nessa de se aventurar, pegar sem criar vínculos, às escondidas e, muitas vezes, em traição. É doloroso e solitário estar nessas dinâmicas. Todos os riscos de morte que eu e outras manas corremos são altos no país que mais nos mata no mundo. Segundo a Antra, só ano passado fomos 175 assassinadas. Ano que vem, completo 35 anos e vou superar a expectativa de vida que me é prevista no Brasil. Se não somos mortas brutalmente pela transfobia, somos levadas ao suicídio por ela, arrastadas a situações de prostituição que nos deixam vulneráveis ao HIV ou, ainda, expostas em relações que de amorosas não têm nada.
"Apelidada de ‘peste gay’, a aids era noticiada como sentença de morte nos anos após o seu descobrimento. Vejo na vacina a oportunidade de cura de estigmas que nos foram colocados como comunidade trans" Gui Takahashi
Por tudo isso, decidi entrar para o estudo e contribuir com a ciência, já que pode ser uma forma futura de me proteger e proteger outras como eu. Além disso, vejo na prevenção vacinal a oportunidade de cura de estigmas que nos foram colocados como comunidade trans, como também diz Bruna Benevides. “Isso poderá trazer ainda impactos na saúde mental, no autocuidado, no resgate da autoestima, na saúde física, sexual e reprodutiva de pessoas trans. Nas relações sociais e na possibilidade de construção de uma nova narrativa sobre relacionamentos com e entre pessoas trans. E ainda no enfrentamento da falácia da culpa que é ligada à nossa luta pela liberdade sexual e de nossos corpos.”
Uma vez que me inscrevi para o estudo, passei por uma triagem. Foi longa, envolveu entrevista, exames médicos, aconselhamento sexual e a assinatura do termo de consentimento. Durante esse processo, detalhes interessantes foram esclarecidos. Por ser um ensaio, metade das pessoas receberá as vacinas em teste, enquanto a outra metade, apenas placebo. Isso quer dizer que não posso continuar vacilando sem a camisinha, já que a vacina não está dada. Outro fato explicado é que é impossível que as vacinas transmitam o HIV porque não são feitas com o vírus real. Sua produção vem de uma proteína artificial que imita uma que compõe a parte externa do vírus. No entanto, é possível que aconteça uma reação vacinal em que testes de HIV apontariam falsamente como positivos em virtude de haver uma resposta imune do corpo, chamada VISP. Assim, a recomendação é que os participantes se testem apenas nos locais em que estão sendo atendidos na pesquisa porque eles têm instrumentos para detectar se a infecção é real ou apenas reação à vacina. Por causa disso, a médica que conversou comigo disse que minha participação era importante e representativa. Fiquei alguns segundos sem entender até ela me explicar que muitas travestis profissionais do sexo viram na VISP um impeditivo porque precisam apresentar regularmente para seus clientes exames de HIV negativados. Foi aí que percebi como minha realidade com carteira assinada é privilegiada e como essa vacina pode ser capaz de mudar a vida de muita gente.
Depois da triagem, tomei minha primeira dose. Toda e qualquer reação que tive pelos dez dias seguintes à aplicação foram registradas em um diário e, em seguida, reportadas à equipe médica do estudo. Por enquanto, nenhum efeito adverso aqui. Dedos cruzados para que a minha experiência e a de outras manas com os testes seja futurosa e consiga transformar o nosso amanhã.
Fonte: Marie Claire
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